“A primeira vez que um Ashaninca me disse que as propriedades medicinais das plantas se aprendiam ingerindo um preparado alucinogénico, pensei que estava a brincar”.
Ao estudar a ecologia de um povo indígena da Amazónia peruana, o antropólogo Jeremy Narby vê-se confrontado com um enigma: os índios, cujos conhecimentos botânicos espantam os cientistas, explicam-lhe invariavelmente que o seu saber provém das alucinações induzidas por certas plantas. Mau grado o seu cepticismo inicial, Narby envolve-se numa investigação multidisciplinar estendendo-se ao longo de dez anos, da floresta amazónica às bibliotecas europeias, no decurso da qual se vem a convencer da veracidade literal das afirmações do índios: uma consciência preparada por drogas pode de facto receber conhecimento exacto. A chave do enigma, segundo a ousada hipótese proposta por Narby, encontra-se no ADN, a molécula da vida presente em cada célula de cada ser vivo.
Ilustrado e rigorosamente documentado, “A Serpente Cósmica, o ADN e as Origens do Saber” revel novas e fascinantes perspectivas sobre áreas tão diversas como a biologia molecular, a antropologia, o evolucionismo, os estados alterados de consciência, os direitos dos povos indígenas e a mitologia – enquanto expõe cruamente os limites do racionalismo.
CRÍTICAS DE IMPRENSA
“Uma surpresa esta obra de Jeremy Narby, um homem da ciência, numa viagem pelo desconhecido, ‘enfeitiçado’ pelo seu contacto directo com as origens do saber dos Ashaninca, atingindo assim os limites da ciência. Para desenvolver o seu doutoramento em Antropologia, o autor viveu com os índios Ashaninca, na Amamzónia peruana, durante dois anos, tendo experienciado com eles algumas facetas desconhecidas deste mundo do qual podemos dizer que conhecemos, afinal, tão pouco. Nomeadamente o facto do seu saber empírico, atestado pela ciência, provir de alucinações induzidas por certas plantas alucinogénicas, como por ex. o ayahuasca. Ao tentar não se deixar enganar, durante a sua estadia, pelas histórias fantásticas e pelo xamanismo reinante, nos quais estava já pré-condicionado a não acreditar, leva-nos a pensar que, afinal, os enganos poderão advir de outros quadrantes… Investigando posteriormente a esta estadia as mais variadas áreas do saber, da Botânica à Neurologia, passando pela Biofotónica, pela Biologia, pela Genética, pela História e pela sua ‘Antropologia’, Jeremy Narby consegue levar o leitor a sentir a pertinência das suas hipóteses, num mundo ainda tão avesso a experimentalismos. Arriscando o seu estatuto no seio da comunidade académica, como outros já tinham feito antes dele, leva-nos a estágios superiores de tentativa de conhecimento deste mundo onde vivemos, percorrendo connosco um caminho que se percebe, no final, tão claro. ‘Porque levaste tanto tempo?’ (…a chegar à conclusão que todas as coisas que eu tinha dito eram verdade?) – pergunta anos mais tarde o tabaquero-ayahuesquero experiente da tribo Ashaninca, ao autor… Sim, parece-me que muito mais tempo ainda vamos levar…” Novos Livros (novoslivros.online.pt), Dez. 2004
EXCERTOS
Eis, portanto, pessoas sem microscópios electrónicos nem formação em bioquímica que escolhem as folhas de um arbusto entre as cerca de oitenta mil espécies amazónicas de plantas superiores, contendo uma hormona cerebral precisa, que combinam com uma substância que bloqueia a acção de uma enzima precisa do aparelho digestivo, encontrada numa liana, a fim de modificar deliberadamente o seu estado de consciência. É como se conhecessem as propriedades moleculares das plantas e a arte de as combinar. E quando lhes perguntamos como têm conhecimento destas coisas, respondem que o seu saber provém directamente das plantas alucinogénicas.
(…)
A antropologia começou assim a tomar consciência de que o seu próprio olhar é uma ferramenta de domínio e que ela não apenas nascera no colonialismo, como continuava a servir a causa colonial através da sua prática. Aquilo a que se chamou a “linguagem neutra e supra-cultural do observador” era na realidade um discurso colonial e uma forma de domínio. A solução, para a disciplina, consistiu em aceitar que ela não era uma ciência, mas sim uma forma de interpretação. O próprio Lévi-Strauss acabou por dizê-lo: “As ciências humanas só são ciências por via de uma lisonjeira impostura. Elas esbarram contra um limite insuperável, porque as realidades que aspiram conhecer são da mesma ordem de complexidade que os meios intelectuais que disponibilizam. Por esta razão, elas são e sempre serão incapazes de dominar o seu objecto de estudo”.
(…)
Contudo, mesmo se decidíssemos abandonar o conceito de “xamanismo”, como se fez há trinta anos com a noção de “totetismo”, não conseguiríamos sair do impasse, porque o problema, a meu ver, não se situa ao nível da palavra, mas sim no olhar daqueles que a utilizam: a análise académica do xamanismo será sempre o estudo racional do irracional, isto é, um contra-senso ou um beco sem saída.
(…)
-Tio, o que são aquelas enormes cobras que vemos ao beber ayahuasca? -Da próxima vez traz a tua máquina e tira-lhes uma fotografia. Assim, depois poderás analisá-las trabquilamente. Pareceu-me uma boa piada, mas mesmo assim retorqui, rindo, que não pensava que as visões aparecessem na película. “Sim, apareceriam, por terem cores tão vivas” – e, dito isto, levantou-se e recomeçou a caminhada.
(…)
Na realidade, o mundo científico, industrial e político acabava de despertar para o potencial económico dos genes das plantas tropicais. De facto, a biotecnologia desenvolvida no decurso dos anos 80 abria novas possibilidades à exploração dos recursos naturais. A biodiversidade das florestas tropicais representava subitamente uma fonte fabulosa de riquezas inexploradas. Mas sem o saber botânico dos povos indígenas, os biotécnicos ver-se-iam reduzidos a testar cegamente as propriedades medicinais das cerca de 250.000 espécies de plantas do planeta.
(…)
Foi no Rio que me apercebi da profundeza do dilema colocado pelo saber alucinatório indígena. Por um lado, os seus resultados são confirmados empiricamente e utilizados pela indústria farmacêutica; por outro, a sua origem não pode sequer discutir-se cientificamente porque contradiz os axiomas do conhecimento ocidental.
(…)
Escrevi nas minhas notas: “Estes deuses patriarcais e exclusivamente masculinos são incompletos no que respeita à natureza. O ADN, tal como a serpente cósmica, não é nem masculino nem feminino – mesmo que as suas criaturas sejam um, outro, ou ambos. Gaia, a deusa grega da Terra, é tão incompleta quanto Zeus; como ele, resulta do olhar que separa antes de pensar e que é incapaz de captar a natureza andrógina e dupla do princípio vital”.
(…)
Tal como as serpentes mitológicas, o ADN é um mestre de transformação: as instruções contidas no ADN são responsáveis pelo ar que respiramos, a paisagem que vemos e a espantosa diversidade dos seres vivos da qual fazemos parte. Em quatro mil milhões de anos, o ADN desmultiplicou-se num número incalculável de espécies diferentes, enquanto permanecia rigorosamente o mesmo.
(…)
No decurso das semanas anteriores, eu começara a considerar que a perspectiva dos biólogos era conciliável com a dos ayahuasqueros, e que ambas podiam ser verdadeiras ao mesmo tempo. Segundo a imagem estereoscópica que via ao desfocalizar-me deste modo, o ADN era uma tecnologia orgânica cuja hiper-sofisticação ultrapassava sem dúvida o nosso entendimento actual, desenvolvida algures fora da Terra, que transformara radicalmente aquando da sua chegada aqui há quatro mil milhões de anos.
(…)
É certo que o trabalho do xamã deve ser remunerado mas, por definição, o sagrado em si, não está à venda; a utilização deste saber com o objectivo de acumular poder pessoal é a própria definição da magia negra. Num mundo onde tudo se compra e onde até mesmo as sequências genéticas são consideradas propriedade privada susceptível de ser comercializada para benefício pessoal, este conceito não será decerto muito fácil de negociar.
(…)
E perguntei-me: como podia a biologia pressupor que o ADN não era consciente, se nem sequer compreendia o funcionamento do cérebro humano, a sede da nossa consciência, ela própria elaborada a partir de instruções contidas no ADN? Como podia a natureza não ser consciente se a nossa própria consciência é fruto da natureza?
(…)
Eis, portanto, pessoas sem microscópios electrónicos nem formação em bioquímica que escolhem as folhas de um arbusto entre as cerca de oitenta mil espécies amazónicas de plantas superiores, contendo uma hormona cerebral precisa, que combinam com uma substância que bloqueia a acção de uma enzima precisa do aparelho digestivo, encontrada numa liana, a fim de modificar deliberadamente o seu estado de consciência. É como se conhecessem as propriedades moleculares das plantas e a arte de as combinar. E quando lhes perguntamos como têm conhecimento destas coisas, respondem que o seu saber provém directamente das plantas alucinogénicas.
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A antropologia começou assim a tomar consciência de que o seu próprio olhar é uma ferramenta de domínio e que ela não apenas nascera no colonialismo, como continuava a servir a causa colonial através da sua prática. Aquilo a que se chamou a “linguagem neutra e supra-cultural do observador” era na realidade um discurso colonial e uma forma de domínio. A solução, para a disciplina, consistiu em aceitar que ela não era uma ciência, mas sim uma forma de interpretação. O próprio Lévi-Strauss acabou por dizê-lo: “As ciências humanas só são ciências por via de uma lisonjeira impostura. Elas esbarram contra um limite insuperável, porque as realidades que aspiram conhecer são da mesma ordem de complexidade que os meios intelectuais que disponibilizam. Por esta razão, elas são e sempre serão incapazes de dominar o seu objecto de estudo”.
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Contudo, mesmo se decidíssemos abandonar o conceito de “xamanismo”, como se fez há trinta anos com a noção de “totetismo”, não conseguiríamos sair do impasse, porque o problema, a meu ver, não se situa ao nível da palavra, mas sim no olhar daqueles que a utilizam: a análise académica do xamanismo será sempre o estudo racional do irracional, isto é, um contra-senso ou um beco sem saída.
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-Tio, o que são aquelas enormes cobras que vemos ao beber ayahuasca? -Da próxima vez traz a tua máquina e tira-lhes uma fotografia. Assim, depois poderás analisá-las trabquilamente. Pareceu-me uma boa piada, mas mesmo assim retorqui, rindo, que não pensava que as visões aparecessem na película. “Sim, apareceriam, por terem cores tão vivas” – e, dito isto, levantou-se e recomeçou a caminhada.
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Na realidade, o mundo científico, industrial e político acabava de despertar para o potencial económico dos genes das plantas tropicais. De facto, a biotecnologia desenvolvida no decurso dos anos 80 abria novas possibilidades à exploração dos recursos naturais. A biodiversidade das florestas tropicais representava subitamente uma fonte fabulosa de riquezas inexploradas. Mas sem o saber botânico dos povos indígenas, os biotécnicos ver-se-iam reduzidos a testar cegamente as propriedades medicinais das cerca de 250.000 espécies de plantas do planeta.
(…)
Foi no Rio que me apercebi da profundeza do dilema colocado pelo saber alucinatório indígena. Por um lado, os seus resultados são confirmados empiricamente e utilizados pela indústria farmacêutica; por outro, a sua origem não pode sequer discutir-se cientificamente porque contradiz os axiomas do conhecimento ocidental.
(…)
Escrevi nas minhas notas: “Estes deuses patriarcais e exclusivamente masculinos são incompletos no que respeita à natureza. O ADN, tal como a serpente cósmica, não é nem masculino nem feminino – mesmo que as suas criaturas sejam um, outro, ou ambos. Gaia, a deusa grega da Terra, é tão incompleta quanto Zeus; como ele, resulta do olhar que separa antes de pensar e que é incapaz de captar a natureza andrógina e dupla do princípio vital”.
(…)
Tal como as serpentes mitológicas, o ADN é um mestre de transformação: as instruções contidas no ADN são responsáveis pelo ar que respiramos, a paisagem que vemos e a espantosa diversidade dos seres vivos da qual fazemos parte. Em quatro mil milhões de anos, o ADN desmultiplicou-se num número incalculável de espécies diferentes, enquanto permanecia rigorosamente o mesmo.
(…)
No decurso das semanas anteriores, eu começara a considerar que a perspectiva dos biólogos era conciliável com a dos ayahuasqueros, e que ambas podiam ser verdadeiras ao mesmo tempo. Segundo a imagem estereoscópica que via ao desfocalizar-me deste modo, o ADN era uma tecnologia orgânica cuja hiper-sofisticação ultrapassava sem dúvida o nosso entendimento actual, desenvolvida algures fora da Terra, que transformara radicalmente aquando da sua chegada aqui há quatro mil milhões de anos.
(…)
É certo que o trabalho do xamã deve ser remunerado mas, por definição, o sagrado em si, não está à venda; a utilização deste saber com o objectivo de acumular poder pessoal é a própria definição da magia negra. Num mundo onde tudo se compra e onde até mesmo as sequências genéticas são consideradas propriedade privada susceptível de ser comercializada para benefício pessoal, este conceito não será decerto muito fácil de negociar.
(…)
E perguntei-me: como podia a biologia pressupor que o ADN não era consciente, se nem sequer compreendia o funcionamento do cérebro humano, a sede da nossa consciência, ela própria elaborada a partir de instruções contidas no ADN? Como podia a natureza não ser consciente se a nossa própria consciência é fruto da natureza?